Flávio Tartuce[1]
Conforme destacado em texto anterior, publicado neste canal, o
Novo CPC
traz um dispositivo relativo à ação de alteração de regime de bens
(art. 734). A regulamentação instrumental dessa demanda é novidade no
sistema processual brasileiro. No que diz respeito à possibilidade
jurídica dessa ação de modificação do regime de bens, esta foi criada
pelo
Código Civil de 2002, especialmente pelo seu art.
1.639,
§ 2º,
segundo o qual: “É admissível alteração do regime de bens, mediante
autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a
procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de
terceiros”. A regra foi praticamente repetida pelo
caput do art.
734 do
Novo Código de Processo Civil. Trata-se de demanda que ganhou grande relevância entre os familiaristas nos últimos anos.
Analisadas
as questões relativas à justa causa para a mudança e os direitos de
terceiros, é preciso abordar os efeitos da sentença que defere a
alteração. O presente autor segue a posição segundo a qual os efeitos da
alteração do regime são ex nunc, ou seja, a partir do trânsito em julgado da decisão, o que nos parece cristalino, por uma questão de eficácia patrimonial.
Conforme
pontuado pelo Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, nos autos do Recurso
Especial 1.300.036/MT, julgado pela Terceira Turma do STJ em maio de
2014, “o segundo ponto controvertido situa-se em torno da fixação do
termo inicial dos efeitos dessa alteração do regime de bens: retroação à
data do casamento (eficácia ‘ex tunc’) ou a partir da data do trânsito
em julgado da decisão judicial que o alterou (eficácia ‘ex nunc’). Essa
questão, ainda hoje debatida na doutrina e na jurisprudência, é
relevante na espécie, pois as partes, após alguns anos de união estável,
casaram-se, em 24/05/1997, pelo regime da separação de bens, alterando
esse regime para comunhão parcial em 2007, deflagrando-se o processo de
separação em outubro de 2008. Em relação à eficácia ‘ex tunc’, o acórdão
recorrido sintetiza os argumentos em prol dessa tese, sendo o principal
deles o de que o regime de bens do casamento deve ser único ao longo de
toda a relação conjugal. Em relação à eficácia ‘ex nunc’, o argumento
central é no sentido de que a eficácia da alteração de um regime de
bens, que era válido e eficaz, deve ser para o futuro, preservando-se os
interesses dos cônjuges e de terceiros”.
Ao final, o Ministro
Sanseverino segue a segunda solução, compartilhada por este autor, “pois
não foi estabelecida pelo legislador a necessidade de que o regime de
bens do casamento seja único ao longo de toda a relação conjugal,
podendo haver a alteração com a chancela judicial. Em Cortes Estaduais,
na mesma esteira, cabe destacar julgados do Tribunal Gaúcho e Paulista”
(por todos: TJRS; Apelação cível n. 0056229-48.2015.8.21.7000, Porto
Alegre, Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Jorge Luís Dall’Agnol, julgado em
26.05.2015, DJERS 03.06.2015 e TJSP, Apelação n.
0013056-15.2007.8.26.0533, Acórdão n. 5065672, Santa Bárbara d’Oeste,
Nona Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Viviani Nicolau, julgado em
12/04/2011, DJESP 01/06/2011).
Esclareça-se que a natureza
desses efeitos é capaz de afastar a necessidade de prova da ausência de
prejuízos a terceiros pelos cônjuges, para que a alteração do regime de
bens seja deferida, conforme sustentamos em texto anterior. Ademais,
eventuais efeitos ex tunc fariam que o regime de bens anterior
não tivesse eficácia, atingindo um ato jurídico perfeito, constituído
por vontade dos cônjuges.
No âmbito da doutrina, e da própria
jurisprudência, ressalte-se, todavia, que a questão não é pacífica.
Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, por exemplo, entendem
que os efeitos são ex tunc porque “quando os cônjuges pretendem
modificar o seu regime, o patrimônio atingido, que sofrerá a incidência
do novo regramento é, por óbvio, aquele existente, até a data da
sentença da mudança. Ora, com isso, é forçoso convir que os bens e
valores amealhados — em conjunto ou separadamente — pelos consortes até o
momento da mudança serão atingidos pelo pronunciamento judicial,
submetendo-se, pois, a novo regramento. Sob esse aspecto, a sentença,
pois, necessariamente, incide no patrimônio anterior. Daí por que a sua
eficácia é ex tunc” (Novo Curso de Direito Civil Direito
de Família. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, v. 6, p. 336). Também podem
ser encontradas decisões estaduais que seguem esse caminho (por todos:
TJMG, Apelação cível n. 1.0223.11.006774-9/001, Rel. Des. Luis Carlos
Gambogi, julgado em 26/06/2014, DJEMG 07.07.2014 e TJDF, Recurso 2010.01.1.006987-3, Acórdão n. 440.239, Primeira Turma Cível, Rel. Des. Natanael Caetano, DJDFTE 25.08.2010, pág. 77).
Exposta a controvérsia e reiterada nossa posição pelos efeitos
ex nunc
da sentença que altera o regime de bens, é preciso retomar debate de
direito intertemporal a respeito dessa demanda, regulamentada agora pelo
Novo CPC. Seria possível alterar regime de bens de casamento celebrado na vigência do
Código Civil de 1916 e do Código de Processo Civil de 1973?
Muitos poderiam pensar que a resposta é negativa, diante do que consta do art.
2.039 do
Código Civil de 2002,
in verbis:“O regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do
Código Civil anterior, Lei
3.071, de 1º de janeiro de 1916, é o por ele estabelecido”. Essa, contudo, não é a melhor conclusão para os devidos fins práticos.
Um
dos primeiros autores na doutrina brasileira a perceber a real intenção
do legislador foi Euclides de Oliveira. A respeito do art.
2.039, explica o jurista que esse dispositivo legal “apenas determina que, para os casamentos anteriores ao
Código Civil de 2002, não poderão ser utilizadas as regras do
novo Código Civil
referentes às espécies de regime de bens, para efeito de partilha do
patrimônio do casal. Ou seja, somente as regras específicas acerca de
cada regime é que se aplicam em conformidade com a lei vigente à época
da celebração do casamento, mas, quanto às disposições gerais, comuns a
todos os regimes, aplica-se o novo Código Civil” (Alteração do Regime de
Bens no Casamento. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueirêdo
[Coords.].
Questões Controvertidas no Novo Código Civil. São Paulo: Método, 2003. V. 1, p. 389).
Em síntese, como o art.
1.639,
§ 2º, do
CC/2002
é uma norma geral quanto ao regime de bens, pode ser aplicada a
qualquer casamento, entendimento esse que foi acatado pelo Tribunal de
Justiça de São Paulo, já no remoto ano de 2004 (TJSP, Apelação Cível n.
320.566-4/0, São Paulo, Décima Câmara de Direito Privado, Rel. Marcondes
Machado, 08.06.2004, v. U.).
Contudo, coube ao Superior Tribunal de Justiça fazer a melhor interpretação da questão. Isso porque a Corte utilizou o art.
2.035,
caput, do CC/2002 e a
Escada Ponteana para deduzir que é possível alterar regime de bens de casamento celebrado na vigência da codificação material anterior.
Como é notório, Pontes de Miranda, em seu
Tratado de Direito Privado (Tomos 3, 4 e 5), dividiu o negócio jurídico em três planos. O primeiro é o
plano da existência, no qual estão os
pressupostos mínimos de um negócio jurídico, que formam o seu
suporte fático: partes, vontade, objeto e forma. O segundo é o
plano da validade, em que os elementos mínimos de existência recebem qualificações, nos termos do art.
104 do
CC/2002,
a saber: partes capazes; vontade livre; objeto lícito, possível,
determinado ou determinável; forma prescrita ou não defesa em lei. Por
fim, no plano da eficácia, estão as consequências do negócio jurídico,
elementos relacionados com os seus efeitos (condição, termo, encargo,
inadimplemento, juros, multa, perdas e danos, entre outros).
Relativamente a esses três planos e à aplicação das normas jurídicas no tempo, estabelece o importante art.
2.035,
caput, do
Código Civil
em vigor: “A validade dos negócios e demais atos jurídicos,
constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto
nas leis anteriores, referidas no art.
2.045,
mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos
preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes
determinada forma de execução”.
Em resumo, o que o dispositivo
legal está estabelecendo é que, quanto aos planos da existência e da
validade (o primeiro está dentro do segundo), devem ser aplicadas as
normas do momento da
constituição ou celebração do negócio. No tocante ao plano da eficácia, devem incidir as normas do momento dos efeitos.
O
regime de bens, por razões claras e lógicas, situa-se no plano da
eficácia, pois diz respeito às consequências práticas do casamento, à
modificação ou extinção de direitos. Ademais, a existência ou a validade
do casamento não depende do regime de bens adotado. Em complemento, é
notório que, não havendo adoção por qualquer regime, prevalecerá o
regime legal ou supletório, qual seja, o da comunhão parcial de bens
(art.
1.640 do
Código Civil).
Diante dessas premissas, entendeu o Tribunal da Cidadania, em conhecido precedente, que “apresenta-se razoável,
in casu, não considerar o art.
2.039 do
CC/2002 como óbice à aplicação de norma geral, constante do art.
1.639,
§ 2º, do
CC/2002,
concernente à alteração incidental de regime de bens nos casamentos
ocorridos sob a égide do CC/1916, desde que ressalvados os direitos de
terceiros e apuradas as razões invocadas pelos cônjuges para tal pedido,
não havendo que se falar em retroatividade legal, vedada nos termos do
art.
5º, XXXVI, da CF/1988, mas, ao revés, nos termos do art.
2.035 do
CC/2002,
em aplicação de norma geral com efeitos imediatos” (STJ, REsp
730.546/MG, Quarta Turma, Rel. Min. Jorge Scartezzini, j. 23.08.2005,
DJ
03.10.2005, p. 279). Sucessivamente, outros julgados surgiram na mesma
esteira desse julgamento, estando a questão consolidada em nossa
jurisprudência (por todos: STJ, REsp 1.112.123/DF, Terceira Turma, Rel.
Min. Sidnei Beneti, j. 16.06.2009,
DJE 13.08.2009; TJRS, Apelação
Cível n. 383376-78.2012.8.21.7000, Bagé, Oitava Câmara Cível, Rel. Des.
Luiz Felipe Brasil Santos, j. 29.11.2012,
DJERS 05.12.2012;
TJSP, Apelação n. 9102946-53.2007.8.26.0000, Acórdão n. 5628185, São
Paulo, Quarta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Fábio Quadros, j.
17.11.2011,
DJESP 24.01.2012; TJPR, Apelação Cível n. 0413965-9, Astorga, Décima Primeira Câmara Cível, Rel. Des. Mário Rau,
DJPR
28.03.2008, p. 110; TJMG, Apelação Cível n. 1.0439.06.053252-0/001,
Muriaé, Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Antônio Marcos Alvim Soares, j.
06.03.2007,
DJMG 04.05.2007; e TJRJ, Apelação Cível n. 2007.001.08400, Quinta Câmara Cível, Rel. Des. Milton Fernandes de Souza, j. 27.03.2007).
Cumpre
esclarecer, por oportuno, que esse entendimento jurisprudencial já
tinha amparo doutrinário no Enunciado 260, aprovado na III Jornada de
Direito Civil, realizada em 2004, nos seguintes termos: “A alteração do
regime de bens prevista no
§ 2º do art.
1.639 do
Código Civil
também é permitida nos casamentos realizados na vigência da legislação
anterior”. Em suma, essa é a posição majoritária da doutrina e da
jurisprudência brasileiras, que vem ser integralmente mantidas na
vigência do Estatuto Processual emergente.
Voltando aos preceitos do
Novo CPC, conforme o
§ 2º do art.
734,
os cônjuges, na petição inicial ou em petição avulsa, podem propor ao
juiz meio alternativo de divulgação da alteração do regime de bens, a
fim de resguardar direitos de terceiros. Assim, por exemplo, não obsta a
divulgação da alteração em um jornal local ou em um sítio da internet.
Mais uma vez, há, na opinião deste autor, uma preocupação excessiva com a
fraude, na contramão da doutrina e da jurisprudência construídas sob a
égide do
Código Civil de 2002.
Por
fim, demonstrando a mesma preocupação, após o trânsito em julgado da
sentença de alteração do regime de bens, serão expedidos mandados de
averbação aos cartórios de registro civil e de imóveis. Nos termos do
mesmo
§ 3º do art.
734 do
CPC/2015,
caso qualquer um dos cônjuges seja empresário, deve ser expedido também
mandado de averbação ao registro público de empresas mercantis e
atividades afins.
[1]
Doutor em Direito Civil pela USP. Professor do programa de mestrado e
doutorado da FADISP – Faculdade Especializada em Direito. Professor dos
cursos de graduação e pós-graduação lato sensu em Direito Privado
da EPD – Escola Paulista de Direito, sendo coordenador dos últimos.
Professor da Rede LFG. Diretor nacional e estadual do IBDFAM – Instituto
Brasileiro de Direito de Família. Advogado e consultor jurídico em São
Paulo.